domingo, maio 29, 2005

Duas questões

Quando comecei a escrever o livro ["Ver: Amor"], senti que queria responder a duas perguntas e creio que vieram de [Bruno] Schulz. Primeira: o que me podia ajudar a mim, David, a manter a minha humanidade, a minha individualidade, num lugar que oblitera a individualidade? E segunda: qual é o processo que leva uma pessoa a tornar-se colaboradora do mal? Acho que qualquer pessoa devia colocar-se estas perguntas, mesmo que não seja judeu e tenha nascido muito depois do Holocausto.

David Grossman (n. 1954), escritor israelita, em entrevista a Alexandra Lucas Coelho (jornal Público, 28 de Maio de 2005), a propósito do seu livro "Ver: Amor".

terça-feira, maio 24, 2005

O Jurado "cara ou coroa?"

Ainda a propósito do concurso de beleza de Keynes, passo a transcrever um problema adaptado de um livro de Frederick Mosteller, Fifty challenging problems in probability with solutions (o problema do flippant juror).

Um júri, com três jurados, tem dois membros que decidem independentemente e cada um deles tem a probabilidade de 0,9 de tomar a decisão correcta; o terceiro membro do júri toma a sua decisão jogando uma moeda ao ar (as decisões do júri são tomadas por maioria). Se no júri houvesse apenas um membro, ele teria a probabilidade de 0,9 de tomar a decisão correcta. Tem este júri, com três membros, uma probabilidade maior de tomar a decisão correcta?

segunda-feira, maio 23, 2005

Liv Ullmann - Opções (II)

O "ponto wok"

Tenho um velho wok na minha vivenda.
Fui lá com o meu amor e mostrei-lhe o lugar mais bonito que conheço no mundo. Os rochedos, os fiordes, a luz e os líquens. Ele só viu o wok .
É velho e está muito enferrujado.
Riu um tanto malevolamente e perguntou:
-Por que é que guarda isto?
Lembrei-me de quem me deu aquele wok e que costumava preparar nele os pratos mais deliciosos. Lembrei-me do cheiro de frango e de gengibre. Lembrei-me do sol, lá fora. E olhei para aquele amor, que só via a ferrugem.
Quando ele se afastou, usei o meu wok. Sabia que aquela seria uma de nossas últimas refeições juntos.(p.28)

Liv Ullmann, Opções, Nova Nordica, 1985.

sexta-feira, maio 20, 2005

O Tratado da Constituição Europeia e o concurso de beleza de Keynes

O Tratado da Constituição Europeia preconiza diversas alterações na repartição do poder na UE, nomeadamente a eleição de um Presidente do Conselho Europeu, a tomada de decisões por maioria qualificada no Conselho de Ministros (ou seja, por 55% dos Estados membros - isto é 14 - correspondendo a 65% dos 450 milhões habitantes), e a eleição do Presidente da Comissão Europeia pelo Parlamento Europeu, sob proposta do Conselho Europeu.

A Comissão Europeia deve reduzir o número de Comissários, dos actuais 25 para 18. A redução do número de Comissários significa que 7 dos países membros (ou pelo menos 7 desses países!), não poderão designar um cidadão nacional para esse órgão da soberania europeia. Como vai ser determinada essa exclusão?

Suponhamos que o Presidente da Comissão Europeia, eleito pelo Parlamento Europeu, emerge da família política mais votada (seja do Partido dos Socialistas Europeus (PSE), do Partido Popular Europeu (PPE), do Grupo do Partido Europeu dos Liberais, Democratas e Reformistas (ALDE) ou ainda da Aliança Europeia (AE)). E que os 18 países que designarão comissários estarão entre aqueles que votaram maioritariamente na família vencedora. Nesse caso não poderá acontecer uma situação parecida com o concurso de Keynes?

O Partido Socialista, em Portugal, poderá alegar nas eleições para o Parlamento Europeu que provavelmente a sua família política irá sair vencedora, e portanto os portugueses têm interesse em votar nele para assim garantirem um Comissário português. E semelhantes especulações poderá fazer o PSD. Claro que estas discussões ainda empobrecerão mais o debate europeu; em vez de discutirmos estratégias políticas, sociais e económicas para a Europa, discutiríamos sondagens...

Espero que os debates sobre o Tratado da Constituição Europeia venham a esclarecer melhor estas questões.

quarta-feira, maio 18, 2005

O concurso de beleza de Keynes

Keynes (1883-1946) no capítulo 12 da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, compara o investimento em acções a um concurso de beleza com umas características particulares.

Nesse concurso existem diversos vencedores: a beldade que é eleita e os membros do júri que acertaram na beldade eleita. Como os jurados são premiados se acertarem na candidata eleita, os seus votos não correspondem necessariamente às suas preferências. Eles estão preocupados, outrossim, em adivinhar qual é a opinião geral de voto, para votarem em conformidade e saírem vencedores. Ou, melhor, estão interessados em adivinhar qual é a opinião geral acerca da opinião geral do voto dos diferentes jurados, para votarem em conformidade; esta é uma avaliação de 3º grau. E Keynes pensa que algumas pessoas socorrem-se de avaliações de 4º, 5º e de graus ainda superiores.

Qual é a implicação deste procedimento? A consequência é que deixa de ser determinante para os investidores o desempenho previsível da empresa, da sua capacidade de gerar lucros no futuro e portanto de pagar dividendos. Passa a ser determinante, isso sim, o que o mercado "pensa" que o mercado "pensa" que vai acontecer. Se porventura está a acontecer uma bolha especulativa, pode continuar a ser interessante investir na empresa (se bem que a sua cotação já exceda o seu valor fundamental), desde que seja convicção geral que este desfasamento ainda vá perdurar e aumentar.

Portanto quando o mercado financeiro se assemelha ao concurso de beleza de Keynes, ele será mais instável e afugentará um conjunto de investidores que o consideram excessivamente arriscado.

segunda-feira, maio 16, 2005

Liv Ullmann - Opções

Uma noite, Woody Allen espera-me em frente ao teatro no seu carro, com motorista. Leva-me para a pré-estreia da sua última comédia. Só nós os dois estamos na plateia.
Pede-me que não ria, mesmo que ache o filme engraçado, porque ficará com medo, quando não me rir de alguma coisa que ele considere engraçada. Em seguida, deita-se no chão, de costas para a tela, e vou mastigando as coxinhas de galinha preparadas pela sua empregada; depois, leva-me de carro para casa. Convido-o para assistir a Mama, se ele prometer que não rirá.
Ele ri. (p.21)

Liv Ullmann, Opções, Nova Nordica, 1985.

quarta-feira, maio 11, 2005

"A ideia chave" - back to 1991?...

Cavaco Silva assina hoje no jornal Público o artigo "A ideia chave", onde defende a premência de aumentar a competitividade das empresas portuguesas, face às suas concorrentes estrangeiras, para assim estancar o empobrecimento relativo do país, "(...) adiando a construção de algumas estruturas físicas menos necessárias à competitividade". Parece um regresso à campanha eleitoral para as legislativas de 1991, em que Cavaco Silva defendia a necessidade de reorientar o esforço público da política do betão para a da qualidade.

segunda-feira, maio 09, 2005

Santiago Gamboa - Tragédia do homem que amava nos aeroportos

Saíu e a ruiva olhou-me com as faces coradas. Logo a seguir deixou a maleta sobre o cadeirão com uma certa falta de jeito e de dentro dela caíram vários livros. Li os títulos: The intelectual and the masses, de John Carey, numa edição de Faber & Faber; Under the vulcano, de Malcom Lowry, e a poesia completa de Ezra Pound. Fiquei surpreendido e olhei-a nos olhos. A Cindy voltou a corar e apanhou os livros sem dizer palavra. (p.95)

Voltei para casa confundido, cansado e vagamente apaixonado. Apaixonado pela Cindy, deduz-se, porque tinha passado tudo muito depressa e a verdade é que sempre sonhara com uma mulher que gostasse de Debaixo do Vulcão. (p.97)

Santiago Gamboa, Tragédia do homem que amava nos aeroportos, in Contos Apátridas, ASA, 2000. E se uma teia amorosa obrigasse a amores nos aeroportos?!...

sábado, maio 07, 2005

Berenice de Racine... E as legendas?

É difícil de seguir a tragédia de Berenice, encenada por Carlos Pimenta no Teatro Nacional D. Maria II, com os actores a falarem em verso. Fechamos os olhos e as palavras ressoam dentro de nós, ou alheamo-nos das vozes "estrangeiras" e concentramo-nos nos corpos, nos seus movimentos, na expressão dos actores, ora animada ora desalentada.

sexta-feira, maio 06, 2005

As datas da ratificação do Tratado da Constituição Europeia

(Actualizado a 30 de Maio)
Ratificação Referendária
Espanha - 20 de Fevereiro de 2005 - Sim
França - 29 de Maio de 2005 - Não
Holanda - 1 de Junho de 2005
Luxemburgo - 10 de Julho de 2005
Polónia - 25 de Setembro de 2005
Dinamarca - 27 de Setembro de 2005
Portugal - Outubro de 2005
Reino Unido - Por fixar, 2006?
Irlanda - Por fixar, início de 2006?
República Checa - Por fixar, Junho de 2006?

Ratificação Parlamentar
Lituânia - 11 de Novembro de 2004 - Sim
Hungria - 20 de Dezembro de 2004 - Sim
Eslovénia - 1 de Fevereiro de 2005 - Sim
Itália - 6 de Abril de 2005 - Sim
Grécia - Sim
Letónia - Em curso
Bélgica - Maio de 2005
Alemanha - Maio de 2005 - Sim
Austria - Maio de 2005 - Sim
Eslováquia - Maio de 2005 - Sim
Chipre - Maio de 2005
Malta - Julho de 2005
Suécia - Fim de 2005
Finlândia - Início de 2006
Estónia - Por fixar

1 de Novembro de 2006 - A Constituição Europeia entra em vigor se for ratificada por todos os Estados membros da UE.

Fonte: Le Monde - Dossiers et Documents, Maio de 2005

quinta-feira, maio 05, 2005

Santiago Gamboa - A vida feliz do jovem Esteban

Um dia, viciado pelo jogo [de xadrez], considerei que já era hora de aprender um pouco de teoria; e meti-me nisso. A primeira coisa que fiz foi ir à Cuesta de Moyano, às barracas de livros de ocasião, para procurar tratados sobre o assunto. O primeiro foi "El Estilo Posicional", de Petronov, no qual aprendi uma série de aberturas clássicas e o modo mais eficaz de as combater. Também aprendi algumas técnicas de ataque e, sobretudo, quando o vício se transformou em paixão, comecei a estudar as biografias e as jogadas célebres dos grandes jogadores de xadrez. Deste modo reconstituí de trás para a frente e da frente para trás as partidas de Capablanca, as de Bobby Fischer, cuja vida me pareceu intrigante e deliciosa; as de Lasker, Alekhine, Tall, Karpov e Kasparov, enfim de muitos grandes mestres. Era fascinante, à medida que avançava, verificar que o jogo de xadrez precisa de uma inteligência especial que, aparentemente, não serve para nenhuma outra coisa na vida. A prova disso é que os jogadores de xadrez mais geniais são seres infantis e inadaptados fora do tabuleiro. Dado que o génio para o xadrez é uma aptidão que, de forma misteriosa, aflora na infância, quase todos foram prodígios que desde pequenos estiveram a cargo de agentes, federações e instrutores que solucionam os aspectos práticos da vida para que a sua mente, livre de obstáculos quotidianos, dê o máximo rendimento. O resultado é previsível: são malcriados, acanhados nas relações humanas, caprichosos e egocêntricos. Bobby Fischer exigia em Reykjavik que todos os semáforos do trajecto do seu hotel ao lugar do jogo estivessem verdes. (p.286-287)

Sobre o tabuleiro (...) a cultura do jogador de xadrez era definitiva. Conhecer profundamente as partidas célebres, desentranhar, dissecar, compreender o porquê deste ou daquele movimento, é uma das chaves do bom jogo e da vitória. Se não se conhece uma posição e se tem talento, pode-se chegar a resolvê-la mediante a análise, mas então quem estrangula o jogador é o relógio. Daí a importância do estudo. (p.303)

(...) Os meus nobres peões morreram como heróis, mas o seu sacrifício não foi em vão, pois abriram espaço a uma nova carga do cavalo e da torre central que apesar de avançar por entre balas se esmagou contra o parapeito de protecção do flanco da rainha. As minhas forças foram-se dizimando e pouco a pouco converti-me num rei sem corte e sem soldados. Era um rei bufo que corria por uma planície vazia, perseguido pelos rugidos do Tigre, que também estava dizimado, mas com vantagem. Pensei capitular, mas estava a divertir-me. (...) (p.314)

Santiago Gamboa (n.1965, Bogotá, Colômbia), A vida do jovem Esteban, ASA, 2003. O autor conta através do protagonista do livro, Esteban Hinestroza, a sua infância e juventude, na Colômbia natal e depois na Europa, onde residiu em diversas cidades (e ainda reside, creio). Nestes trechos ele dá-nos conta da sua prática de xadrez em Madrid, em 1985, durante um período em que aguardava o início das aulas na universidade. Nessa altura descobriu o Bar Capablanca que passou a frequentar, porque era barato, servia "gigantescas" tapas a acompanhar cerveja ou café, e o dono jogava xadrez com os clientes. Veio a participar num campeonato organizado pelo bar, e o último trecho transcrito relata um bocadinho da sua partida contra o campeão regional de Madrid, Casimiro el Tigre Caldéron.
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