O 28 de Maio, a ditadura, a não-inscrição
O Golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 derrubou o Governo de António Maria da Silva do Partido Democrata (facção maioritária do Partido Republicano Português, PRP) e instaurou uma ditadura militar, que foi institucionalizada posteriormente pelo Estado Novo de Oliveira Salazar, assente no partido único a União Nacional, que surge em 1930. "Havia uma crise de legitimidade dos governos do PRP, que se conjuga com a crise económica e social que o país vivia desde o início dos anos 20, agudizada pela crise internacional de 1921 e pela crise de revalorização do Escudo, a qual teve um preço económico e social muito alto, em termos de falências, de desemprego", refere Fernando Rosas num artigo de Isabel Braga do jornal Público ("O 28 de Maio foi feito contra a "balbúrdia" da República, não para criar o Estado Novo", 28 de Maio de 2006). Em Junho de 1926 Salazar é convidado por Mendes Cabeçadas para a pasta das Finanças, mas o seu tempo ainda não tinha chegado - percebendo que os chefes militares fraquejavam, ao fim de 13 dias abandonou o Governo e regressou a Coimbra. Em 1928 o General Carmona é candidato único às eleições presidenciais, o Coronel Vicente de Freitas é nomeado chefe do Governo e Salazar fica com a pasta das Finanças (Abril de 1928). Num ano equilibrou as contas públicas, com a redução dos salários dos funcionários públicos. Em 1932 Salazar é nomeado Presidente do Conselho de Ministros.
Salazar concentra em si o poder, acumulando as pastas da Guerra, dos Negócios Estrangeiros e das Finanças... E raramente convocava Conselhos de Ministros - a pluraridade, a discussão, o confronto, eram valores inimigos, mesmo no seio do poder. Enfim, valores politiqueiros. Nas palavras de Fernando Rosas, "só excepcionalmente, em momentos cruciais, ele convocava o Conselho de Ministros. Fê-lo para conceder a base dos Açores aos americanos, para decidir a adesão à NATO e para fazer o balanço do fim da guerra".
E hoje temos a reflexão da não-inscrição de José Gil, relativamente ao período de 48 anos de autoritarismo.
Não houve julgamentos de Pides nem de responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação afirmativa da «Revolução» pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se constrói um «branco» (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os mesmos ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer.
Quando o luto não vem inscrever no real a perda de um laço afectivo (de uma força), o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso.
Num outro aspecto ainda, a não-inscrição parece mais grave por não se ter liquidado a si própria, já que a herdámos também do salazarismo.
Se, num certo sentido, se disse até há pouco (hoje diz-se menos) que «nada mudou» apesar das liberdades conquistadas, é porque muito se herdou e se mantém das antigas inércias e mentalidades da época da ditadura: desde o medo, que sobrevive com outras formas, à «irresponsabilidade» que predomina ainda nos comportamentos dos portugueses. Com efeito, no tempo de Salazar «nada acontecia» por excelência. Atolada num mal difuso e omnipresente, a existência individual não chegava sequer a vir à tona da vida. E o que era uma vida, nesse tempo? Aquilo que ditava o ideal moral do salazarismo: uma sucessão de actos obscuros, com tanto mais valor quanto se faziam modestos, humildes, despercebidos… Onde inscrevê-los, se não havia espaço público e tempo colectivo visíveis; onde, senão na eternidade muda das almas, segundo a visão católica própria de Salazar?
Nisso, como em tantos outros aspectos, o Portugal de hoje prolonga o antigo regime. A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade – reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados. José Gil, "Portugal, hoje. O medo de existir", Relógio d’Água, Lisboa, 2004.
Salazar concentra em si o poder, acumulando as pastas da Guerra, dos Negócios Estrangeiros e das Finanças... E raramente convocava Conselhos de Ministros - a pluraridade, a discussão, o confronto, eram valores inimigos, mesmo no seio do poder. Enfim, valores politiqueiros. Nas palavras de Fernando Rosas, "só excepcionalmente, em momentos cruciais, ele convocava o Conselho de Ministros. Fê-lo para conceder a base dos Açores aos americanos, para decidir a adesão à NATO e para fazer o balanço do fim da guerra".
E hoje temos a reflexão da não-inscrição de José Gil, relativamente ao período de 48 anos de autoritarismo.
Não houve julgamentos de Pides nem de responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação afirmativa da «Revolução» pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se constrói um «branco» (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os mesmos ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer.
Quando o luto não vem inscrever no real a perda de um laço afectivo (de uma força), o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso.
Num outro aspecto ainda, a não-inscrição parece mais grave por não se ter liquidado a si própria, já que a herdámos também do salazarismo.
Se, num certo sentido, se disse até há pouco (hoje diz-se menos) que «nada mudou» apesar das liberdades conquistadas, é porque muito se herdou e se mantém das antigas inércias e mentalidades da época da ditadura: desde o medo, que sobrevive com outras formas, à «irresponsabilidade» que predomina ainda nos comportamentos dos portugueses. Com efeito, no tempo de Salazar «nada acontecia» por excelência. Atolada num mal difuso e omnipresente, a existência individual não chegava sequer a vir à tona da vida. E o que era uma vida, nesse tempo? Aquilo que ditava o ideal moral do salazarismo: uma sucessão de actos obscuros, com tanto mais valor quanto se faziam modestos, humildes, despercebidos… Onde inscrevê-los, se não havia espaço público e tempo colectivo visíveis; onde, senão na eternidade muda das almas, segundo a visão católica própria de Salazar?
Nisso, como em tantos outros aspectos, o Portugal de hoje prolonga o antigo regime. A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade – reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados. José Gil, "Portugal, hoje. O medo de existir", Relógio d’Água, Lisboa, 2004.